domingo, 9 de setembro de 2007

1. INTRODUÇÃO

«leia-se como se quiser, pois ficará
sempre errado».

«Meu Deus,
faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.»


(Helder,1995:162)

Nos anos sessenta surgiram vários autores na poesia portuguesa e foi durante essa década que Jorge de Sena e Luiza Neto Jorge consumaram o acervo mais importante da sua produção. Duas poéticas, a de Luiza manifestando-se em palavras-imagens enquanto unidades de significação num discurso entrecortado, curto, contido, e a de Jorge de Sena de uma discursividade fluida, marcada, (recuperando veios formais e temáticos de carácter classicizante), sincrética (porque integrando e trabalhando processos discursivos de variadas escolas), ousada, carnívora. Encontramos na poética neto-jorgiana a resistência, mediante uma poesia sobrecodificada, densa de uma enorme riqueza de sentidos, convocando a sexualidade, erotizando a escrita e cuja espessura poética resiste a leituras lineares; e em Sena temos a oposição verberatória do Portugal da mediocridade política e intelectual, «[Pátria] Torpe dejecto de romano império; / babugem de invasões; salsugem porca / de esgoto atlântico; irrisória face». A produção poética neto-jorgeana é uma poesia de insurreição, de revolta, e o lugar que nela é ocupado pelo corpo e pela sexualidade contribui maximamente para esse resultado, fazendo com que se aproxime não só do âmbito da luta feminista que acompanha os anos em que vai sendo publicada, mas também do âmbito mais alargado da resistência ao sistema de valores promovido pelo Estado Novo.

2. LUIZA NETO JORGE E JORGE DE SENA: DUAS EXPERIÊNCIAS-LIMITE DO POEMA-LIMITE

Não havendo poéticas divorciadas da realidade concreta que se atravesse, nem sendo possível a emergência do poema fora de uma situação pessoal enraizada numa experiência do mundo, e do mundo mediado pelas palavras construtoras de mundos, fora, portanto, de uma fusão consubstancializadora do poeta com a mesma palavra reverberativa nele e dele desencadeada, encontramos em Luiza Neto Jorge e em Jorge de Sena precisamente duas produções onde por vezes a tumultuosidade insubmissa, insurrecta, e a violência provocatória, desobediente, carreiam toda uma energia que clama pelos respectivos pólos opostos, os pólos da religação pacificada e do desejo de permanência numa existência segundo a carne, isto é, onde todos os sentidos da sensorialidade humana se não amputem seja sob que forma de imortalidade for. No caso de Sena, angularmente, António Ramos Rosa apresenta de um modo conciso a sua complexidade e a sua riqueza:

«Será difícil tentar definir numa fórmula uma poesia tão complexa que é, ao mesmo tempo, exercício espiritual e exercício de linguagem, poesia de conhecimento e de interrogação filosófica e metafísica, mas sempre dentro da mais alta intimidade reflexiva que a alma humana possa ter consigo mesma, e ao mesmo tempo uma poesia mais directa que corajosamente afronta alguns problemas cruciais da condição humana presente. Uma grande unidade interior, um tom que é a própria voz do poeta, preside a todas essas poesias que, afinal, se verifica serem apenas uma. É que a linguagem de Jorge de Sena é a fusão de um pensamento, de uma palavra e de um acto.»

[...]

«Sena renova [...] um conceptualismo que eleva a poesia a um nível rigoroso de meditação em que as ideias e os conceitos não se apresentam exteriores ao instante fulgurante do processo criador, antes se vinculam à sensibilidade imediata e singular do próprio acto poético. A sua originalidade residirá, sobretudo, nessa profunda assunção e encarnação das ideias através de uma linguagem conceptual que, agravando-se voluntariamente, se nega e supera a si mesma, até nos pôr em face do impensável e obscuro cerne, donde toda a poesia se ilumina. [...] O uso da linguagem conceptual não é para Sena senão um limite voluntário que a si próprio se impôs, não para se encerrar nele, mas para mais eficientemente exercer a sua liberdade.»

«A Poesia de Jorge de Sena ou O Combate pela Consciência Livre, in Poesia, Liberdade Livre, Lisboa, Ulmeiro, 1986, pp.91-93.

As convocações de Deus, da Fé e da Esperança, compendiados numa subjacente ideologia de igreja não as encontraremos clarificadas, explicitas, objectivas, em quaisquer dos textos daqueles poetas e o posicionamento essencial de ambos dirigia-se essencialmente contra o sistema de valores veiculado pelo Estado Novo, o que incluía obviamente o apropriamento do conceito «Deus», mas na medida em que «Deus» neles se tematiza e comparece, vertido em conceito operativo, e em que a recusa ou a descrença se enunciam, na medida ainda em que componentes como «fé» e «esperança» se corporizam, mesmo que em ânsia, mesmo que em falta, nessa mesma medida adquirem, do meu ponto de vista, suficiente consistência e traduzem aquilo para que este trabalho visa chamar a atenção, a saber, que há em qualquer nomeação de Deus um levar em conta, um fazer aparecer, fulgurar, no corpo da palavra e do poema como corpo, mesmo ou precisamente quando é negado, quando é esvaziado de sentido. Mas que sentido? O sentido com que a história O carregou. O sentido com que os homem O modelaram a fim de servir propósitos de poder, de conquista e de preservação do mesmo poder e da mesma legitimidade de conquista. Um Deus portanto confortável na hora de justificar a guerra e o monopensamento político. E aí está, em Sena, esse «não falar mais» que é ainda falar e triplicadamente, mas não à maneira dos que manejam o conceito de Deus:
De mim não falo mais: não quero nada. De Deus não falo: não tem outro abrigo. Não falarei também do mundo antigo, pois nasce e morre em cada madrugada.
{...]

(«Génesis», 1983, publicação póstuma)

[...]

Custa é saber
como se emenda morte,
ou se a desvia,
como a tecla certa arreda
do branco suporte
a porcaria.


(Luiza Neto Jorge, A Lume. Poesia)

Como de um modo lúcido escreve Eduardo Lourenço, vinha-se, nesses anos, de uma literatura ética, mas: «com o grave defeito de servir em grande parte exactamente a mesma ética do mundo que se propunha 'transformar'", e caminhava-se para a "neutralidade ética inegável, ou antes, [para a] indiferença ética profunda" (Lourenço, 1966: 928). Onde em Luiza encontramos uma pluralidade de vozes em concomitância no poema, como manifestação tríptica de trindades enunciatórias, também encontramos em alguns dos seus poemas uma enunciação na primeira pessoa e, portanto, a presença daquela vaga inscrição no tempo e no contexto, aspectos que concorrem para a construção de uma singularidade lírica, mas este dado não é nela o mais comum. O que nela é mais comum é que a enunciação faça comparecer uma subjectividade difusa e instável, que deve ser posta em relação com a aceleração discursiva que o poema procura atingir. Uma singularidade lírica é um aspecto que está até mais presente nos poemas finais, coligidos em A Lume, já permeáveis às circunstâncias de doença e à iminência da morte, do que nos poemas de violento descursivismo erótico anterior. E os últimos poemas exprimem essa perda e essa degradação do corpo acompanhadas por uma desaceleração discursiva. Como refere Luís Miguel Nava, é "à (...) diminuição da força do desejo [que] corresponde uma maior 'clareza' da escrita" (Nava, 1989: 61), dado observável tanto no plano enunciativo como no semântico e sintáctico. A poesia já desacelerada, tardia, de Luiza, confrontada com a ‘má máquina’ corporal que lhe dá a dura equação da doença e da morte, enuncia claramente e em pausa o que nas manifestações sessentistas era desmesura e desordem vitais, condição de resistência. Agora no escondimento velado na terceira pessoa deseja-se a emenda e o desvio da morte, fazendo eco às metáforas bíblicas de destruição dela como cume e processo da história, da morte como inimiga, da morte como realidade custosa de encarar, mas que no fim não existirá. Tanto a submissão como a insubmissão à morte são as grandes violências bíblicas e se no contexto desta poesia se ausenta o lugar temático da ‘eternidade’, semanticamente todo o poema «Encantatória» é um grito agudo, carregado, pela imortalidade:

Custa é saber
como se invoca o ser
que assiste à escrita,
como se afina a má-
quina que a dita,
como no cárcere
nu se evita,
emparedado, a lá-
grima soltar.

Custa é saber
como se emenda morte,
ou se a desvia,
como a tecla certa arreda
do branco suporte
a porcaria.
(Luiza Neto Jorge, A Lume. Poesia)

3. FULGURAÇÃO MÍSTICA OU QUANDO O ÊXTASE, RELÂMAGO EPIFÂNICO, ESTÁ NO POEMA

Será o poema uma construção estritamente racional ou, pelo contrário, não convocará todo o ser nas suas mais inusitadas dimensões, recantos da mente impossíveis de encurralar por qualquer tomografia axial? Terá a racionalidade orgulhosamente posta toda na crítica suficiente capacidade de abarcar, engolir, resumir, a potência de sentidos desencadeados no poema, acontecimento de dicção? Ainda que o aspire, a resposta é não. Também é preciso virar as coisas ao contrário e partir para o poema como acontecimento na carne, no desempenho da carne, na sua absoluta actualização fisiológica para depois compreender todo o alcance da quase fé e do lado místico nele indelevelmente inscritos. O êxtase estético operado por uma boa leitura de viva voz expressiva, ou interior, memorizada, do poema neto-jorgiano A Magnólia, por exemplo, admitirá exclamações simplistas e absolutizadoras, da mais legítima subjectividade, como «talvez um dos poemas máximos da literatura em português», mas não é verdade que a energia maximizadora do prazer desencadeado não é apenas intelectual, mas física, por partir desde logo do desempenho de uma voz engatilhada por uma língua de carne que nos acomete e arrasta? Uma leitura deficitária do mesmo poema não o destruirá, não o anulará imediatamente? Crendo que uma leitura invisual na polpa Braile dos dedos sobe à voz, como no leitor levita dos olhos à voz performativa que tudo transforma em volta. Uma crítica que não baixou suficientemente ao corpo e à música da língua para exceder a referência ao mesmo corpo e à mesma música da língua, é ainda uma crítica de pensamento no seu primado cartesiano oprimente. Ainda não é totalizadora e por isso mesmo não descreve nem faz a suficiente paráfrase. Aliás absorver na paráfrase crítica esta poesia ou aquela poesia é um acto temerário porque as dimensões de silêncio e de intraduzibilidade são, desde logo, condições da mesma poesia (caucionada ou não por uma instância leitora com suficiente força canonizadora). O pensamento crítico não canoniza dada obra e dada poética, mas, como acontece paradigmaticamente com Sena e Luiza, recolhe, comenta e parafraseia o que pode. E o que pode é pouco. Neles, o poema é um poema de ruptura, é uma coisa entre as coisas, mas já irredutível à representação neo-realista com a sua retórica social militante optimista. O poema, tal como a pessoa, é já a epifania de algo além que precisa soltar-se na abertura de todos os seus sentidos e de todos os seus recursos, coisa que a utopia à esquerda e a utopia à direita, na sua pulsão totalizadora, tende ainda a reprimir:

«O que o ouvido deseja é ouvir música, e a proibição de ouvir música chama-se negação do ouvido. O que os olhos desejam é ver beleza, e a proibição de ver beleza chama-se negação da vista. O que a narina deseja é cheirar perfume, e a proibição de cheirar perfume chama-se negação do olfacto. Do que a boca quer falar é do justo e do injusto, e a proibição de falar do justo e do injusto chama-se negação do entendimento. O que o corpo deseja gozar são alimentos ricos e roupas belas, e a proibição desse gozo chama-se negação das sensações do corpo. O que o espírito quer é ser livre, e a proibição desta liberdade chama-se negação da natureza»

(Yang Chu, século II d. C.)

Teça-se desde já, a este respeito, uma parábola exemplificativa de uma outra vertente da erupção mística, extática e irreprimível do poema (que é corpo e do corpo parte) perante a sua própria epifania. O poema aparece e o corpo vai atrás: os homens titubeiam e adormecem perante os que conferenciam de poesia e de poetas, sobretudo quando, aos que conferenciam, lhes não assiste uma voz suficientemente trabalhada e por isso mesmo afirmativa, expressiva, que conheça os mecanismos articulatórios, inflexivos, diccionais, que qualquer discurso em público, por respeito ao bom gosto do público, deve merecer. Os mesmos homens despertam quando os que dizem competentemente qualquer texto e em especial a poesia (porque não a balbuciam, porque a não gaguejam, porque a não ciciam, porque a não nasalam) desenterram afinal do Zeus a Cornucópia toda da palavra nascida para o ouvido como primeira e essencial música, desde que afinada. E isto como se a missa recusada, o banquete rotineiro e aborrecido de falar de poesia e de poetas, que coloca os restantes à mesa na função solidária do acotovelamento e do pontapé reciprocamente despertadores, não passasse de um mero modo pagão dilatório da frementemente desejada comunhão monoteísta com o poema uno e o ministro da voz que o medeia, de que Luís Miguel Cintra será, ainda dentro desta parábola acabada de propor, o modelo. Também é esta a mística a que se reporta este ensaio porque visa flagrar na conceptualização restrita do vocábulo também a actualização sensível, a manifestação viva, potente, esponjosa e penetrante, pelo seu fulgor, da palavra poética e que em Sena e Neto Jorge carreiam toda a potência de uma conversão e reconversão. «A Portugal» podemos lê-lo como dos mais afirmativos cânticos de amor descritivos e sintéticos da história e onde a taxatividade, o cruel palavrão e o insulto exigem uma tradução de leitura precisamente ao contrário porque a contradição inclui o dito e pressupõe tal intensidade de paixão e de amor que por assim serem exigem a densa culminância, ela, sim, absoluta, da palavra poética:

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não. Nem é ditosa, porque o não merece. Nem minha amada, porque é só madrasta. Nem pátria minha, porque eu não mereço A pouca sorte de nascido nela. Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta quanto esse arroto de passadas glórias. Amigos meus mais caros tenho nela, saudosamente nela, mas amigos são por serem meus amigos, e mais nada. Torpe dejecto de romano império; babugem de invasões; salsugem porca de esgoto atlântico; irrisória face de lama, de cobiça, e de vileza, de mesquinhez, de fatua ignorância; terra de escravos, cu pró ar ouvindo ranger no nevoeiro a nau do Encoberto; terra de funcionários e de prostitutas, devotos todos do milagre, castos nas horas vagas de doença oculta; terra de heróis a peso de ouro e sangue, e santos com balcão de secos e molhados no fundo da virtude; terra triste à luz do sol calada, arrebicada, pulha, cheia de afáveis para os estrangeiros que deixam moedas e transportam pulgas, oh pulgas lusitanas, pela Europa; terra de monumentos em que o povo assina a merda o seu anonimato; terra-museu em que se vive ainda, com porcos pela rua, em casas celtiberas; terra de poetas tão sentimentais que o cheiro de um sovaco os põe em transe; terra de pedras esburgadas, secas como esses sentimentos de oito séculos de roubos e patrões, barões ou condes; ó terra de ninguém, ninguém, ninguém: eu te pertenço. És cabra, és badalhoca, és mais que cachorra pelo cio, és peste e fome e guerra e dor de coração. Eu te pertenço mas seres minha, não.
(Jorge de Sena)

4. IMORTALIDADE E FÉ OU O CÁLCULO QUE ATRAIÇOA

A tematização explícita ou implícita da imortalidade não foi banida da poesia ocidental só pelo facto de a problematização negadora de Deus dela constar cada vez mais agudamente nos últimos dois séculos, sobretudo após a revolução coperniciana, nos planos teológico e filosófico, quanto ao conceito de Providência (em diálogo e presença interactuante com o homem, as sociedades e a sua história, ou, pelo contrário, inexoravelmente alheada? Dentro ou fora dos mecanismos de mal desencadeados pelas leis da natureza?), revolução indirectamente operada na psique europeia do século XVIII pelo Grande Terramoto de Lisboa. Pelo contrário, o trabalho da palavra orquidiante e magnolescente, porque abrindo em magnífica e densa ascensão de silêncio e, portanto, em fechamento irredutível a paráfrases possessivas nos tubos de ensaio de uma crítica com pretensões demasiado científicas para a circunscrição de objectos tão ilimitadamente fluidos, inapreensíveis e moventes, pressupõe somente uma espiral reflexiva similar à da reclusão dos místicos, para quem a visão do Absoluto no (e a partir do) prosaico permitia mergulhar ainda mais no mesmo Absoluto. Pelo contrário ainda porque estilhaçadas as certezas-cimento social de base intuitiva no âmbito das confissões cristãs, perdidas as grandes bases comuns agregadoras, assentes no legado judeo-cristão, tais conceitos não desapareceram mas ganharam maior força perturbadora, uma maior capacidade interrogativa, uma maior amplitude de problematização e tematização, fosse ou não fosse a partir de pontos de vista mais esquerdizantes, mais do ponto de vista de um messianismo marxizante, que é um cristianismo sem Cristo com a respectiva, correlata e concorrencial promessa escatológica, ou fosse no plano mesmo da deriva anarquista, quando questiona e combate as chamadas grandes «ficções sociais». Perdida a fé judeo-cristã, fica o influxo da ética judeo-cristã, perdida a força utópica da teoria ideológica, quer como projecto quer como reduto, fica aquele personalismo forte onde melhor tende a consolidar-se o primado da pessoa e a sua irredutível defesa e afirmação. A esta crise, a tal extinção de todas as certezas ideológicas ou religiosas, não é imune a consciência artística dos dois poetas. No fim de um percurso duro e denso, Sena reverbera, no seu soneto «Quem muito viu...», de ressonâncias autobiográficas, um fado pesado, onde se retomam implicitamente todos os fios de relação tortuosa, contraditória e paradoxal com a pátria, fios mal resolvidos camonianos, bocageanos, mas também de qualquer profeta Elias bíblico cindido com os do seu sangue pelos próprios imperativos de consciência, e em que a morte precede a própria morte, mas onde curiosamente há um advérbio de constância e de identidade «será sempre sem pátria» a introduzir uma nota de resiliência vital:

Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

Ora, como, de igual modo, não a ler, a essa forte componente reflexiva, agregadora e explosiva mística, embora diferenciadamente, nas manifestações poéticas neto-jorgianas e senianas? Como não ler em ambos o posicionamento do poema como fronteira, como limiar mediador do tempo, do espaço, do corpo e da vontade, dentro ou fora da vertente surrealizante? Como não ver ainda claramente, por exemplo, em Sena, um fortíssimo diálogo com o Belo, provenha de onde provenha, e uma poesia saturada de experimentalismo e abertura? O mesmo encontramos, embora num posicionamento funcional outro, nas «escritas daninhas» (Jorge:229) de Luiza, que propõe legendas para quadros de Brauner e Max Ernst, faz as aves de Sá de Miranda caírem com a calma sob a forma de avestruzes, transforma os cantos de Os Lusíadas em Recantos e aumenta-lhes o número para dezanove, e onde encontramos uma galinha presa que «do sótão [...] / viu um avião voar» ou uma sombra que se suicidou «debaixo do meu pé» (Jorge:39). Nada nela é automático, mas consciente tendo como tem «todo o eixo da gramática (...) à / disposição» (Jorge:158). Joaquim Manuel Magalhães chama-lhe «fingimento sabotador», a este processo que em Os Sítios Sitiados gera uma «irracionalidade surreal» rercorrendo à «racionalidade da escrita» e à «perseguição consciente [...] de determinados efeitos»: «o mais aparente inconsciente do texto é atravessado por uma rede conceptual consciente, que finge um desequilíbrio que não passa de uma outra ordem sintáctica e do imaginário» (Magalhães, 1981: 209).

As chaves de leitura filosóficas, Hegel, em Sena, uma consciência feminina da escrita na invenção de uma poesia crua em que o corpo da linguagem se confunde com o corpo do sujeito poético, em Luiza, e que fundamentam as suas poéticas, não são suficientes para univocar qualquer das nossas leituras porque a provocação, uma vez desencadeada, segue operante e aberta. Até o silêncio com que a educação em Portugal tende programaticamente a cumular autores textualmente espessos, como estes, atesta a divergência revolucionária instituída no conjunto daquelas obras com os limites da chamada decência e do politicamente adequado, à recusa hipócrita do vernacular ou do nome e função sexual do que sexualmente deva funcionar, também, em parte, porque o poder resiste o mais que pode ao humor questionador dos mitos colectivos, à revelação inteira do corpo desnudado e à força desinstaladora do poema provocação que é desestabilização. Há efectivamente a tendência para sacralizar de tal modo o saber e a autoridade institucionais que estes cristalizam numa seriedade esvaziada de autenticidade, pronta a contaminar de hieratismo o fluxo puro dos sentimentos e dos pensamentos que se lhes deparam ou então exigindo um culto, uma veneração subliminar condições prévias de qualquer favorecimento da atenção:

[...]

Sendo com o seu ouro, aurífero,
o corpo é insurrecto.
Consome-se, combustível,
no sexo, boca e recto.

[...]

(Luiza Neto Jorge, Terra Imóvel, Poesia.)

Ora, as questões da esperança em sentido teológico, pelo menos nos últimos dois séculos, se têm sido colocadas e valoradas de uma forma antropologicamente consistente, tal abordagem pôde agregar por vezes pressupostos absurdizadores, porque quantificacionistas e redutores subjacentes à aplicação de metodologias científicas e matemáticas lá, onde quantificar e calcular as probabilidades de validade da(s) Fé(s) e da(s) Esperança(s), resumíveis à existência ou não de Deus, e enquanto virtudes teologais definidas pela Igreja, redunda numa ousada anedota paradoxalmente destrutiva da mesma Fé e Esperança no momento em que são concomitante e calculisticamente assumidas ou apostáveis.

É o que acontece, por exemplo, na célebre máxima baseada na chamada Esperança Matemática: «Posso apostar que Deus existe: se ganhar, ganho tudo, se perder, não perco nada». Por outras palavras, a equação, segundo Pascal, em que Esperança Matemática (E), que se traduz pela relação E=G/P, em que G é o ganho que pode resultar da aposta e P a probabilidade associada a essa aposta. Baseando-nos sempre em conceitos práticos da matemática podemos ver que se a esperança matemática é muito elevada, devemos logicamente apostar nessa hipótese, pois, sendo o Ganho enorme ― na prática "infinito" (a vida eterna no Paraíso) ― e mesmo que a probabilidade de isso acontecer seja quase zero, a divisão dum valor infinitamente grande por um infinitamente pequeno dá uma esperança matemática igual a um valor infinitamente grande. Ora, era assim que se procuravam convencer, desde há dois séculos, as pessoas esclarecidas ou cientificamente cultivadas, e, portanto, tendencialmente não crentes, a aceitar a existência de Deus, mesmo se, como muito bem se pode concluir, tal aceitação fosse racional, interesseira e desprovida de qualquer valor moral e até mesmo contraditadora do sentido de Deus que os crentes bem fundamentados e culturalmente esclarecidos, por outro lado, defendem. No seu ajuste de contas com o idealismo, não apenas espinosita, mas sobretudo o hegeliano, Ludwig Feuerbach e os seus «Princípios da Filosofia do Futuro» (1843) ecoam sempre para fazer claras distinções:

«Se, portanto, pensas em Deus como num ser sem a pressuposição de qualquer outro ser ou objecto exterior, a propriedade que transferes para Deus é uma propriedade do teu pensamento.»,
Ludwig Feuerbach, «Princípios da Filosofia do Futuro» (1843), p.31.

5. A OBRA PARTICULAR COMO PARTO CONSANGUÍNEO AO PASSADO

Com esta linhagem de questionamento e este tumulto ideológico confrontaram-se poéticas, movimentos e tendências estéticas. Num tempo de alargamento desta bolha insustentável clamando pela dissolução das hipocrisias políticas, dos pensamentos únicos, Neto Jorge e Sena escreveram. (O ano de 1961 parece ter sido qualquer coisa de termonuclearmente compulsivo em matéria de publicação poética na ruptura). Neles, a palavra poética irrompe justamente nessa potenciação de sentidos mais vastos, levitando da forma que os manifesta e sustenta: seja a temática do corpo, da sexualidade e erotismo, do acto criador ou da erupção corpórea (porque pelo corpo mediada) da poesia, subjacente a tudo repousa um prosaico absolutizado e absolutizável nas suas humílimas actualizações. Se pudesse ser redutível a um aforismo sintetizador, o poema é a cristalização monumental da condição observadora e fruidora do humano. Tais questões, agudamente colocadas a cada passo no conjunto da obra daqueles poetas, crescem em autenticidade e validade na medida em que nunca estejam fechadas, e ambas as poéticas, traduzindo expressivamente a plasticidade marmórea da poiesis, fazem justiça aos pressupostos de esperança e de além para que o género humano tende e nada parece poder apagar, porque alguns dos seus poemas permitem leituras pressupositivas da absoluta irredutibilidade do humano, dado o tom inconformado e resistente que tais textos absorvem e que, por exemplo, no poema neto-jorgiano «Quarta Dimensão», na passagem do presente do indicativo para o imperfeito, deixa de todo em todo entrever:

[...]

a luminosa vocação, a luminosidade
de uma terra sábia e rotunda
suplantava aqueles gritos portadores
de uma defunta órfica voz

[...]


(Luiza Neto Jorge, Os Sítios Sitiados, Poesia).

O relevo e a relevância poéticas para uma definição fundante e referencial da humanidade faz da obra seniana e neto-jorgiana algo de consanguineamente familiar quer da descrição tabular do escudo de Aquiles (tão magnificamente exemplificativa, por tão precoce como paradigma de interpenetração artística ou de um discurso interartístico transversal), quer de toda a sensibilidade e lirismo que a Afrodite Calipígea suscita, tratando-se da expressão de uma só ânsia: o trânsito para o plano da imortalidade, ganho somente conseguido na medida em que Aquiles sobreviva naquela descrição e Afrodite, pelo menos a Afrodite Calipígea, também prevaleça naquele mármore de impensável e eloquente impecabilidade e que na verdade ainda podemos contemplar ao vivo em Nápoles, no Museo Nazionale.

Outra e a mesma coisa a poesia. Quando o sentir o mundo e a realidade humana se traduz numa absorção cultural aos mais diversificados níveis, o resultado é a arte, e muitas vezes a arte que questiona a própria arte disseminada pelo passado, questionando nela as fontes de energia ― convicção e esperança ― que justificaram tamanhos investimentos (na arquitectura, na pintura e na música, por exemplo). Esse foi um dos posicionamento poéticos de Sena: da arte para o homem e naturalmente incluindo aí o seu destino último e para se confrontar com o seu próprio percurso e a sua perspectiva diferenciados relativamente àquela energia de base.

No entanto, a estes aspectos modernos da sua poesia aliou recursos da tradição medieval e renascentista, tornando a sua obra, simultaneamente, clássica e revolucionária. Disso é exemplo a utilização que, por vezes, fez do soneto e a par da forma clássica deste tipo de poema, surge um experimentalismo sintáctico e morfológico que subverte as fronteiras entre classicismo e modernidade, superando-as. Toda a sua obra, aliás, se orienta por esta tentativa de superação, a superação dos antagonismos entre escolas literárias (realismo social, surrealismo, experimentalismo), de certas oposições humanas com raízes na cultura ocidental, como as de corpo/alma, ciência/poesia, bem/mal, Deus/homem. Uma obra que estriba campos, uma obra personalista e uma perspectiva de Portugal de grande ousadia de que uma particular e rebelde ironia nunca se ausenta:

Por vezes, para os portugueses (e sobretudo pelos próprios portugueses), tem sido usado o termo grego diáspora, aplicado à colossal dispersão de seres humanos de origem portuguesa pelo universo ao longo dos séculos, sem dúvida numa proporção que poucos países do mundo poderão apresentar. Mas, quanto a mim, o uso deste termo deve ser feito com certas qualificações, e tendo em mente, pelo que tem a ver com a Península Ibérica, a que foi primeiro aplicado aquele helenismo. Com efeito, diáspora corresponde à expulsão dos judeus da Palestina, e à sua forçada dispersão pelo mundo, quando, no ano 70 da nossa era, o imperador romano Tito destruiu a Jerusalém que se rebelara contra a dominação de Roma. Enorme parte desses judeus terá tomado o caminho da nossa Ibéria, aonde por séculos constituíram a aristocracia do judaísmo, os sefarditas, por oposição aos judeus dispersos nas partes orientais da Europa ou no Oriente Próximo, os ashkenazis (esta profunda divisão ainda hoje subsiste no judaísmo, e são os últimos quem numericamente domina nos Estados Unidos e em Israel). Se pensarmos que os judeus da Ibéria tiveram, apesar de todas as restrições, catorze séculos de poderem misturar-se com a outra gente, e que, depois das Inquisições e das conversões forçadas ao catolicismo que criou os cristãos-novos (dos quais saíram algumas das maiores figuras das Espanhas católicas e canonizadas, todos com avós penitenciados pela Inquisição, como Santa Teresa de Jesus ou S. João da Cruz, grandes escritores de Doutores da Igreja, do mesmo modo que saíram famílias que judaizaram às escondidas até que os fins do século XVIII as libertaram, sendo que o brasileiro António José da Silva, o grande autor lisboeta de comédias, foi dos últimos a não escapar à fogueira), tiveram mais cinco séculos para continuarem mais livremente a mistura, nenhum de nós pode cuspir para o ar – até a família real portuguesa (e outras mais) tinha costela judaica por mais de um lado da árvore genealógica secreta. Portanto, diáspora, aplicado à gente portuguesa é como um lembrete do que haja de sangue judaico em nós (e saiba-se que, na Idade Média, foi na Península Ibérica que a cultura hebraica conheceu de novo uma era de magnificente esplendor). Metaforicamente, sem esquecer o acima dito, poderíamos fazer um paralelo entre o que aconteceu naquele distante ano 70 em que o ilustre Tito dispersou os judeus, e o que tem acontecido durante mais de oito séculos a todos nós, dispersos por sucessivas gerações de governantes portugueses, desde a fundação de um país que sempre desejou viver das rendas dos outros (e, por desgraças de vária ordem, ganhou a liberdade, mas não uma mudança dessa política). Nesse sentido, temos tido uma diáspora ao longo do tempo, como uma vez os judeus a tiveram no espaço (não contando as vezes, coitados, em que a bondade e a caridade cristãs os fizeram andar de mala aviada).

(Ser-se Imigrante e como, (2001), SENA, Jorge de.)


Uma crítica fundamental à identidade e à história que na arte seniana é superação: e esta superação tem raízes filosóficas na dialéctica hegeliana e no marxismo, reconhecidas pelo próprio escritor. Para Jorge de Sena, a poesia era, ela mesma, uma forma de testemunhar e transformar o mundo; da relação estabelecida entre o sujeito poético e o objecto que ele tomava como matéria da sua poesia resultava uma outra entidade — o próprio poema, objecto estético constituído por meio da linguagem. A poesia era, assim, uma forma de intervenção, embora entendida de forma diversa do neo-realismo. A crítica que faz ao Estado Novo é reveladora:

Criança que era, e adolescente que ia sendo depois, ainda recordo como republicanos da (“outra senhora”) se riam confiadamente, à espera da revolução que acabaria com aquilo tudo já, já... e tiveram tempo de morrer primeiro, porque aquilo de que eles se riam havia sido pacientemente construído de pedra e cal para resistir a tudo e mesmo se adaptar a todas as democracias deste mundo e do outro (não tem conta em Portugal os impolutos democratas que a gente conheceu aos milhares em posições, postos, e outras atitudes altamente comprometedoras da integridade pelo menos moral das suas pessoas físicas, mas temos de aceitar que tudo no mundo se faz com conversos e com arrependidos, e, é sabido, alguns dos maiores santos começaram por ser refinados patifes).

(Ser-se Imigrante e como, (2001), SENA, Jorge de.)

Tal surge exemplarmente claro, a propósito da oratória A Criação, de Haydn, perante a qual procede a um escondimento do mesmo objecto musical haydniano para poder projectar poeticamente as suas reflexões no afastamento reconhecido entre o Criador e as criaturas, o divino e o humano [neste ponto, partilhamos do essencial da análise de Francisco Cota Fagundes em A Poet’s Way with music: Humanism in Jorge de Sena’s Poetry, pp. 197-200], ao evocar «estes homens que podiam escrever da Criação, Haydn, Milton e outros», Sena assume-se como profundamente humano quando se afasta desse «mundo», «apenas criado» na ausência de uma humanidade imperfeita e limitada, e da qual ele, assumindo uma voz plural, como se de geração, um «nós», é o mais fiel e atento representante:


Felizes estes homens que podiam escrever da Criação,
confiadamente compor – por mais dores que sofressem
enquanto humanos e como seres viventes –
tão jubilantes cânticos do criar do Mundo.
Era belo, era bom, era perfeito o Mundo.
É certo que o cantavam quando apenas era criado,
e o par humano pisava sem pecado
O jardim paradisíaco.

Nós nem mesmo em momentos únicos,
raríssimos, epifânicos,
― e não só por não crermos no pecado ―,
não podemos.
(Arte de Música, p. 175.)

As pulsões textualizadoras de Luiza e do autor da conferência sobre Rimbaud «O Dogma da Trindade Poética», 1941, num dado momento manifestadas curiosamente em circunstâncias de um certo e distinto exílio do solo materno, distinguindo-os embora a títulos vários no que a processos discursivos, (para além do percurso que em duas décadas se fez de um maior textualismo ou tensão textual a uma maior tensão emocional) a orientações filosóficas ou pelo menos a uma particular mundividência de fundo, por exemplo, diga respeito, une-os numa comum vertente transformadora do fazer poético, marcadamente autónoma e irredutível a lógicas de escola ou de movimento, embora à primeira e ao segundo permeáveis, numa afirmação de carácter assinalável sobretudo tendo em conta as cinzas ainda fumegantes de um modernismo retomado por uma sensibilidade pós-modernista disposta a cavalgar o herdado Pégaso de rédea de ouro, já domado e obediente às enormes possibilidades de ductilidade da palavra e da matéria privilegiadas pelo primeiro modernismo:

Corpo Insurrecto

Sendo com o seu ouro, aurífero,
o corpo é insurrecto.
Consome-se, combustível,
no sexo, boca e recto.

Ainda antes que pegue
aos cinco sentidos a chama,
por um aceso acesso
da imaginação
ateiam-se à cama
ou a sítio algures,
terra de ninguém,
(quem desliza é o espaço
para o corpo que vem),

labaredas tais
que, lume, crepitam
nos ciclos mais extremos,
nas résteas mais íntimas,
as glândulas, esponjas
que os corpos apoiam,
zonas aquáticas
onde os órgãos boiam.

No amor, dizendo acto de o sagrar,
apertado o corpo do recém-nascido
no ovo solar,
há ainda um outro
corpo incluído,

mas um corpo aquém
de ser são ou podre,
um repuxo, um magma,
substância solta,
com pulmões.

Neste amor equívoco
(ou respiração),
sendo um corpo humano,
sendo outro mais alto,
suspenso da morte,
mortalmente intenso,
mais alto e mais denso,

mais talhado é o golpe
quando o põem em prática
com desassossego na respiração
e o sossego cru de quem,
tendo o corpo nu,
a carne ardida,
lhe pede o ladrão
a bolsa ou a vida.

(Luiza Neto Jorge, Terra Imóvel, Poesia.)

6. CONCLUSÃO COMO EXERCÍCIO DE INCONCLUSIVIDADE

Exposto isto, o escopo deste trabalho não terá sido determinar e pôr em evidência o modo como um e outro consumaram, nas suas poéticas, tal linha modernista, mas somente determinar, dentro do monstruoso cosmos poético, o de Jorge de Sena e o de Luiza Neto Jorge, como, a partir da instabilidade gerada pelo colapsar generalizado das grandes directrizes ideológicas ou a chamada falência das grandes narrativas legitimadoras, que definiam um sentido para a história, na esteira de um certo projecto ou ideal iluminista de sociedade ― falência que resume parcialmente, afinal, a condição pós-moderna ― desaparecendo a fé numa visão teleológica e holística da história e do homem dentro dela e dela agente, o modo como, nestas poéticas, se manifesta o paradigma da fé questionada, desejada ou censurada, elementos associados ao desejo de prevalência. Pretendeu-se também ver até que ponto podemos detectar, por existirem, na substância de alguns poemas, dimensões de quase fé, ou seja, marcas transfiguradoras dos mais prosaicos recantos da realidade, conferindo-lhes dimensões de fulguração transcendente, mesmo na explícita e aparente negação da divindade próxima e actuante em favor da pessoa humana. Para além do discurso há sempre uma tonalidade provocatória que diz o que não diz. Quando à condição humana se apõe o dubitativo sobre a sua imortalidade ou a correlata negação de Deus, é preciso compreender que são ideias de que se fala e é para isto mesmo que, em prefácio a As Doutrinas Existencialistas, de Régis Jolivet, Delfim Santos chama a atenção:

«A recusa à redução do homem ao plano conceptual das coisas e à subsumpsão idealista ou realista, que, neste caso, se equivalem como agentes de deturpação da existência humana, é característica da filosofia existencial desde Kierkegaard e das perspectivas diversas que, a partir do pensador dinamarquês, se estruturaram em Heidegger e Sartre, Jaspers e Marcel, enquanto reivindicação dos direitos da subjectividade, sempre ponto de partida absoluto do existente em sua radical temporalidade, quer esta existência seja ou não admitida como participação divina. E mesmo quando esta participação divina é negada, como explicitamente em Sartre, isso acontece por exigência de coerência interna do ponto de partida existencial impeditivo de qualquer extrapolação fácil; a partir da existência, Sartre admite que o projecto fundamental do homem é ser Deus. [...] Aliás, afirmar é negar a negação do que se afirma, como negar é afirmar a afirmação do que se nega. E afirmar ou negar a «ideia de Deus», pois afirmação e negação só às ideias se referem, tem recíproca equivalência. Deus, como existente, não pode ser subsumido pela «ideia» sempre imperfeita da sua apreensão, como a filosofia existencial o afirma para a existência humana.»

(Prefácio de Delfim Santos a As Doutrinas Existencialistas,
de Régis Jolivet, decano da Fac. de Filosofia da Universidade Católica de Lião, 1956.)

A poesia que se remete a outras manifestações de arte, que invoca outras actualizações artísticas, reproduz uma prática e uma valoração que durante séculos, nos planos da pintura e da música antigas, por exemplo, como diz G. Gurdjieff, as resumia: toda a arte veiculava ideias e conhecimento e actualizá-la era revelá-los. Daí que mereça grande atenção no plano da explicitação do mesmo conhecimento todo o diálogo e interrogação ekfrástica seniana nas suas múltiplas actualizações:

Ancient art has a specific inner content. At one time, art possessed the same purpose that books do in our day, namely: to preserve and transmit knowledge. In olden days, people did not write books, they incorporated their knoledge into works of art. We would find a great many ideias in the works of ancient art passed down to us, if only we knew how to read.


Tal desejo, o desejo de prevalecer, e a batalha por consumá-lo perde-a o homem, e, de um modo lúcido e inconformado, o homem de que se reveste o poeta, para o poema. Perdem-na os poetas para os poemas, mas resta estabelecer até que ponto é que tal inelutável morte não consiste afinal numa vitória completa ou na mais completa forma de vencer, sendo alguns desses mesmos poemas vestígios monumentais de uma recusa que aceita. É o poema que garantidamente permanece e suplanta, na substância sensível actualizável pelo facto de ser dizível e intelectualizável assim como na materialidade dos seus suportes, aquele que o origina. Sendo o poeta um criador, experimentar desde logo este desnível devorador, que é .ter de morrer, que é saber ir sobreviver-lhe a obra criada, converteu-se desde há muito em tema e em problema à procura de um desenvolvimento e de uma saída. Em Neto Jorge temos toda uma teorização dos textos, dos poemas produzidos com custo, peças de tecido físico que, no papel, reflectem conceitos, funções e movimentos poéticos, teorização obliqua, porque a única possível, onde ocorre a despersonalização, o desmembramento, a «transfusão progressiva» (Jorge:189) do corpo do homem para o corpo do texto, como dizia Luiza numa excelente imagem desse esvaimento incontinente. O poema sai da corporeidade do autor pela «língua / ou [por] outro órgão de amor» para dizer o que «o braço não podia» (Jorge:82) e, uma vez proferido, aparece estruturado para ir construir uma realidade e é aí que passa a ter lugar o poeta, somente após o seu poema actuar e assim permitir que ele, poeta, exista, porque afinal só poderia haver poeta, depois de haver poema.

O modo como, quer num caso, quer noutro, quer numa quer noutra poéticas, o corpo é convocado, na sua dimensão totalizadora e mediadora, afinal, canal dialógico com o todo, com o Cosmos, na superação física de uma antropologia dualizadora, fez com que nelas se actualizassem dimensões do humano onde essa religação, essa quase fé e quase esperança, em sentido escatológico, por vestigiais que fossem, se tornassem possíveis e, por isso tecessem com outros textos, textos por ventura de fé plena e plena esperança, uma espécie de diálogo que é também um confronto, relação, diálogo implícitos que este trabalho visou explicitar e explorar, tomando como pontos de partida alguns poemas. Vimos como na reclusão da e pela palavra, Luiza Neto Jorge e Jorge de Sena, na medida em que corporizam um olhar particular sobre o imanente, lhe conferem, pela dimensão epifânica da palavra, uma saliência e uma relevância a todos os títulos luminosa.

Dizia uma vez Aquilino...

Dizia uma vez Aquilino que em Portugal
os filósofos se exilavam ainda em seu país
(v.g. Spinoza). O curioso porém
é que também ninguém foi santo lá:
os nascidos em Portugal foram todos sê-lo noutra parte
(St. António, S. João de Deus, etc.)
e outros santos portugueses, se o foram,
terá sido, porque, estrangeiros que eram e em Portugal
vivendo, não tiveram outro remédio
(v.g. Rainha Santa) senão ser santos,
à falta de melhor. Ó país danado.
Porque os heróis também nunca tiveram melhor sorte
(Albuquerque e outros que o digam) a menos que
tivessem participado de revoluções feitas
*em vez de* (v.g. o Condestável que fez
fortuna e a casa de Bragança e acabou só Santo quase).

(Jorge de Sena)

BIBLIOGRAFIA

CARLOS, Luís Adriano, Fenomenologia do Discurso Poético – Ensaio Sobre Jorge de Sena, Porto, Campo das Letras, 1999.

FEUERBACH, Ludwig, «Princípios da Filosofia do Futuro» (1843).

JORGE, Luiza Neto (1993), Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim.
LOURENÇO, Eduardo (1966), "Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos", O Tempo e o Modo, nº 42, Outubro.
MAGALHÃES, Joaquim Manuel (1981), "Luiza Neto Jorge", Os Dois Crepúsculos, Lisboa, A Regra do Jogo.
MAGALHÃES, Joaquim Manuel, 1981, Os Dois Crepúsculos: sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas, A Regra do Jogo, Edições, Lisboa.

MAGALHÃES, Joaquim Manuel, 1989, Um Pouco da Morte, col. «Temas e Documentos», n.º 11, Editorial Presença, Lisboa.

MAGALHÃES, Joaquim Manuel, 1999, Rima Pobre, poesia portuguesa de agora, Editorial Presença, Lisboa.

NAVA, Luís Miguel Nava (1989), "Acmé a ser arte - Alguns aspectos da poesia de Luiza Neto Jorge", Colóquio/Letras, nº 108, Março-Abril.

ROSA, António Ramos, «A Poesia de Jorge de Sena ou O Combate pela Consciência Livre, in Poesia, Liberdade Livre, Lisboa, Ulmeiro, 1986

SENA, Jorge de, Ser-se Imigrante e como, (2001).

SENA, Jorge de, Poesia I (1961), II e III, Lisboa. (1978).