domingo, 9 de setembro de 2007

2. LUIZA NETO JORGE E JORGE DE SENA: DUAS EXPERIÊNCIAS-LIMITE DO POEMA-LIMITE

Não havendo poéticas divorciadas da realidade concreta que se atravesse, nem sendo possível a emergência do poema fora de uma situação pessoal enraizada numa experiência do mundo, e do mundo mediado pelas palavras construtoras de mundos, fora, portanto, de uma fusão consubstancializadora do poeta com a mesma palavra reverberativa nele e dele desencadeada, encontramos em Luiza Neto Jorge e em Jorge de Sena precisamente duas produções onde por vezes a tumultuosidade insubmissa, insurrecta, e a violência provocatória, desobediente, carreiam toda uma energia que clama pelos respectivos pólos opostos, os pólos da religação pacificada e do desejo de permanência numa existência segundo a carne, isto é, onde todos os sentidos da sensorialidade humana se não amputem seja sob que forma de imortalidade for. No caso de Sena, angularmente, António Ramos Rosa apresenta de um modo conciso a sua complexidade e a sua riqueza:

«Será difícil tentar definir numa fórmula uma poesia tão complexa que é, ao mesmo tempo, exercício espiritual e exercício de linguagem, poesia de conhecimento e de interrogação filosófica e metafísica, mas sempre dentro da mais alta intimidade reflexiva que a alma humana possa ter consigo mesma, e ao mesmo tempo uma poesia mais directa que corajosamente afronta alguns problemas cruciais da condição humana presente. Uma grande unidade interior, um tom que é a própria voz do poeta, preside a todas essas poesias que, afinal, se verifica serem apenas uma. É que a linguagem de Jorge de Sena é a fusão de um pensamento, de uma palavra e de um acto.»

[...]

«Sena renova [...] um conceptualismo que eleva a poesia a um nível rigoroso de meditação em que as ideias e os conceitos não se apresentam exteriores ao instante fulgurante do processo criador, antes se vinculam à sensibilidade imediata e singular do próprio acto poético. A sua originalidade residirá, sobretudo, nessa profunda assunção e encarnação das ideias através de uma linguagem conceptual que, agravando-se voluntariamente, se nega e supera a si mesma, até nos pôr em face do impensável e obscuro cerne, donde toda a poesia se ilumina. [...] O uso da linguagem conceptual não é para Sena senão um limite voluntário que a si próprio se impôs, não para se encerrar nele, mas para mais eficientemente exercer a sua liberdade.»

«A Poesia de Jorge de Sena ou O Combate pela Consciência Livre, in Poesia, Liberdade Livre, Lisboa, Ulmeiro, 1986, pp.91-93.

As convocações de Deus, da Fé e da Esperança, compendiados numa subjacente ideologia de igreja não as encontraremos clarificadas, explicitas, objectivas, em quaisquer dos textos daqueles poetas e o posicionamento essencial de ambos dirigia-se essencialmente contra o sistema de valores veiculado pelo Estado Novo, o que incluía obviamente o apropriamento do conceito «Deus», mas na medida em que «Deus» neles se tematiza e comparece, vertido em conceito operativo, e em que a recusa ou a descrença se enunciam, na medida ainda em que componentes como «fé» e «esperança» se corporizam, mesmo que em ânsia, mesmo que em falta, nessa mesma medida adquirem, do meu ponto de vista, suficiente consistência e traduzem aquilo para que este trabalho visa chamar a atenção, a saber, que há em qualquer nomeação de Deus um levar em conta, um fazer aparecer, fulgurar, no corpo da palavra e do poema como corpo, mesmo ou precisamente quando é negado, quando é esvaziado de sentido. Mas que sentido? O sentido com que a história O carregou. O sentido com que os homem O modelaram a fim de servir propósitos de poder, de conquista e de preservação do mesmo poder e da mesma legitimidade de conquista. Um Deus portanto confortável na hora de justificar a guerra e o monopensamento político. E aí está, em Sena, esse «não falar mais» que é ainda falar e triplicadamente, mas não à maneira dos que manejam o conceito de Deus:
De mim não falo mais: não quero nada. De Deus não falo: não tem outro abrigo. Não falarei também do mundo antigo, pois nasce e morre em cada madrugada.
{...]

(«Génesis», 1983, publicação póstuma)

[...]

Custa é saber
como se emenda morte,
ou se a desvia,
como a tecla certa arreda
do branco suporte
a porcaria.


(Luiza Neto Jorge, A Lume. Poesia)

Como de um modo lúcido escreve Eduardo Lourenço, vinha-se, nesses anos, de uma literatura ética, mas: «com o grave defeito de servir em grande parte exactamente a mesma ética do mundo que se propunha 'transformar'", e caminhava-se para a "neutralidade ética inegável, ou antes, [para a] indiferença ética profunda" (Lourenço, 1966: 928). Onde em Luiza encontramos uma pluralidade de vozes em concomitância no poema, como manifestação tríptica de trindades enunciatórias, também encontramos em alguns dos seus poemas uma enunciação na primeira pessoa e, portanto, a presença daquela vaga inscrição no tempo e no contexto, aspectos que concorrem para a construção de uma singularidade lírica, mas este dado não é nela o mais comum. O que nela é mais comum é que a enunciação faça comparecer uma subjectividade difusa e instável, que deve ser posta em relação com a aceleração discursiva que o poema procura atingir. Uma singularidade lírica é um aspecto que está até mais presente nos poemas finais, coligidos em A Lume, já permeáveis às circunstâncias de doença e à iminência da morte, do que nos poemas de violento descursivismo erótico anterior. E os últimos poemas exprimem essa perda e essa degradação do corpo acompanhadas por uma desaceleração discursiva. Como refere Luís Miguel Nava, é "à (...) diminuição da força do desejo [que] corresponde uma maior 'clareza' da escrita" (Nava, 1989: 61), dado observável tanto no plano enunciativo como no semântico e sintáctico. A poesia já desacelerada, tardia, de Luiza, confrontada com a ‘má máquina’ corporal que lhe dá a dura equação da doença e da morte, enuncia claramente e em pausa o que nas manifestações sessentistas era desmesura e desordem vitais, condição de resistência. Agora no escondimento velado na terceira pessoa deseja-se a emenda e o desvio da morte, fazendo eco às metáforas bíblicas de destruição dela como cume e processo da história, da morte como inimiga, da morte como realidade custosa de encarar, mas que no fim não existirá. Tanto a submissão como a insubmissão à morte são as grandes violências bíblicas e se no contexto desta poesia se ausenta o lugar temático da ‘eternidade’, semanticamente todo o poema «Encantatória» é um grito agudo, carregado, pela imortalidade:

Custa é saber
como se invoca o ser
que assiste à escrita,
como se afina a má-
quina que a dita,
como no cárcere
nu se evita,
emparedado, a lá-
grima soltar.

Custa é saber
como se emenda morte,
ou se a desvia,
como a tecla certa arreda
do branco suporte
a porcaria.
(Luiza Neto Jorge, A Lume. Poesia)

3 comentários:

Unknown disse...

passeando pela web encontrei o seu esconderijo,rsrsrrs... nossa,mais que espaço maravilhoso!!! que a sua semana seja fabulosa! grande beijo ♥

(http://fairytopia-claudia.zip.net/)

SP disse...

Os teus blogues são MUITO bons!
MUITO!

Um abraço grande com estima...

hora tardia disse...

absolutamente encantada com o seu blog. este.


e grata.



______________!