Exposto isto, o escopo deste trabalho não terá sido determinar e pôr em evidência o modo como um e outro consumaram, nas suas poéticas, tal linha modernista, mas somente determinar, dentro do monstruoso cosmos poético, o de Jorge de Sena e o de Luiza Neto Jorge, como, a partir da instabilidade gerada pelo colapsar generalizado das grandes directrizes ideológicas ou a chamada falência das grandes narrativas legitimadoras, que definiam um sentido para a história, na esteira de um certo projecto ou ideal iluminista de sociedade ― falência que resume parcialmente, afinal, a condição pós-moderna ― desaparecendo a fé numa visão teleológica e holística da história e do homem dentro dela e dela agente, o modo como, nestas poéticas, se manifesta o paradigma da fé questionada, desejada ou censurada, elementos associados ao desejo de prevalência. Pretendeu-se também ver até que ponto podemos detectar, por existirem, na substância de alguns poemas, dimensões de quase fé, ou seja, marcas transfiguradoras dos mais prosaicos recantos da realidade, conferindo-lhes dimensões de fulguração transcendente, mesmo na explícita e aparente negação da divindade próxima e actuante em favor da pessoa humana. Para além do discurso há sempre uma tonalidade provocatória que diz o que não diz. Quando à condição humana se apõe o dubitativo sobre a sua imortalidade ou a correlata negação de Deus, é preciso compreender que são ideias de que se fala e é para isto mesmo que, em prefácio a As Doutrinas Existencialistas, de Régis Jolivet, Delfim Santos chama a atenção:
«A recusa à redução do homem ao plano conceptual das coisas e à subsumpsão idealista ou realista, que, neste caso, se equivalem como agentes de deturpação da existência humana, é característica da filosofia existencial desde Kierkegaard e das perspectivas diversas que, a partir do pensador dinamarquês, se estruturaram em Heidegger e Sartre, Jaspers e Marcel, enquanto reivindicação dos direitos da subjectividade, sempre ponto de partida absoluto do existente em sua radical temporalidade, quer esta existência seja ou não admitida como participação divina. E mesmo quando esta participação divina é negada, como explicitamente em Sartre, isso acontece por exigência de coerência interna do ponto de partida existencial impeditivo de qualquer extrapolação fácil; a partir da existência, Sartre admite que o projecto fundamental do homem é ser Deus. [...] Aliás, afirmar é negar a negação do que se afirma, como negar é afirmar a afirmação do que se nega. E afirmar ou negar a «ideia de Deus», pois afirmação e negação só às ideias se referem, tem recíproca equivalência. Deus, como existente, não pode ser subsumido pela «ideia» sempre imperfeita da sua apreensão, como a filosofia existencial o afirma para a existência humana.»
(Prefácio de Delfim Santos a As Doutrinas Existencialistas,
de Régis Jolivet, decano da Fac. de Filosofia da Universidade Católica de Lião, 1956.)
A poesia que se remete a outras manifestações de arte, que invoca outras actualizações artísticas, reproduz uma prática e uma valoração que durante séculos, nos planos da pintura e da música antigas, por exemplo, como diz G. Gurdjieff, as resumia: toda a arte veiculava ideias e conhecimento e actualizá-la era revelá-los. Daí que mereça grande atenção no plano da explicitação do mesmo conhecimento todo o diálogo e interrogação ekfrástica seniana nas suas múltiplas actualizações:
Ancient art has a specific inner content. At one time, art possessed the same purpose that books do in our day, namely: to preserve and transmit knowledge. In olden days, people did not write books, they incorporated their knoledge into works of art. We would find a great many ideias in the works of ancient art passed down to us, if only we knew how to read.
Tal desejo, o desejo de prevalecer, e a batalha por consumá-lo perde-a o homem, e, de um modo lúcido e inconformado, o homem de que se reveste o poeta, para o poema. Perdem-na os poetas para os poemas, mas resta estabelecer até que ponto é que tal inelutável morte não consiste afinal numa vitória completa ou na mais completa forma de vencer, sendo alguns desses mesmos poemas vestígios monumentais de uma recusa que aceita. É o poema que garantidamente permanece e suplanta, na substância sensível actualizável pelo facto de ser dizível e intelectualizável assim como na materialidade dos seus suportes, aquele que o origina. Sendo o poeta um criador, experimentar desde logo este desnível devorador, que é .ter de morrer, que é saber ir sobreviver-lhe a obra criada, converteu-se desde há muito em tema e em problema à procura de um desenvolvimento e de uma saída. Em Neto Jorge temos toda uma teorização dos textos, dos poemas produzidos com custo, peças de tecido físico que, no papel, reflectem conceitos, funções e movimentos poéticos, teorização obliqua, porque a única possível, onde ocorre a despersonalização, o desmembramento, a «transfusão progressiva» (Jorge:189) do corpo do homem para o corpo do texto, como dizia Luiza numa excelente imagem desse esvaimento incontinente. O poema sai da corporeidade do autor pela «língua / ou [por] outro órgão de amor» para dizer o que «o braço não podia» (Jorge:82) e, uma vez proferido, aparece estruturado para ir construir uma realidade e é aí que passa a ter lugar o poeta, somente após o seu poema actuar e assim permitir que ele, poeta, exista, porque afinal só poderia haver poeta, depois de haver poema.
O modo como, quer num caso, quer noutro, quer numa quer noutra poéticas, o corpo é convocado, na sua dimensão totalizadora e mediadora, afinal, canal dialógico com o todo, com o Cosmos, na superação física de uma antropologia dualizadora, fez com que nelas se actualizassem dimensões do humano onde essa religação, essa quase fé e quase esperança, em sentido escatológico, por vestigiais que fossem, se tornassem possíveis e, por isso tecessem com outros textos, textos por ventura de fé plena e plena esperança, uma espécie de diálogo que é também um confronto, relação, diálogo implícitos que este trabalho visou explicitar e explorar, tomando como pontos de partida alguns poemas. Vimos como na reclusão da e pela palavra, Luiza Neto Jorge e Jorge de Sena, na medida em que corporizam um olhar particular sobre o imanente, lhe conferem, pela dimensão epifânica da palavra, uma saliência e uma relevância a todos os títulos luminosa.
Dizia uma vez Aquilino...
Dizia uma vez Aquilino que em Portugal
os filósofos se exilavam ainda em seu país
(v.g. Spinoza). O curioso porém
é que também ninguém foi santo lá:
os nascidos em Portugal foram todos sê-lo noutra parte
(St. António, S. João de Deus, etc.)
e outros santos portugueses, se o foram,
terá sido, porque, estrangeiros que eram e em Portugal
vivendo, não tiveram outro remédio
(v.g. Rainha Santa) senão ser santos,
à falta de melhor. Ó país danado.
Porque os heróis também nunca tiveram melhor sorte
(Albuquerque e outros que o digam) a menos que
tivessem participado de revoluções feitas
*em vez de* (v.g. o Condestável que fez
fortuna e a casa de Bragança e acabou só Santo quase).
(Jorge de Sena)
«A recusa à redução do homem ao plano conceptual das coisas e à subsumpsão idealista ou realista, que, neste caso, se equivalem como agentes de deturpação da existência humana, é característica da filosofia existencial desde Kierkegaard e das perspectivas diversas que, a partir do pensador dinamarquês, se estruturaram em Heidegger e Sartre, Jaspers e Marcel, enquanto reivindicação dos direitos da subjectividade, sempre ponto de partida absoluto do existente em sua radical temporalidade, quer esta existência seja ou não admitida como participação divina. E mesmo quando esta participação divina é negada, como explicitamente em Sartre, isso acontece por exigência de coerência interna do ponto de partida existencial impeditivo de qualquer extrapolação fácil; a partir da existência, Sartre admite que o projecto fundamental do homem é ser Deus. [...] Aliás, afirmar é negar a negação do que se afirma, como negar é afirmar a afirmação do que se nega. E afirmar ou negar a «ideia de Deus», pois afirmação e negação só às ideias se referem, tem recíproca equivalência. Deus, como existente, não pode ser subsumido pela «ideia» sempre imperfeita da sua apreensão, como a filosofia existencial o afirma para a existência humana.»
(Prefácio de Delfim Santos a As Doutrinas Existencialistas,
de Régis Jolivet, decano da Fac. de Filosofia da Universidade Católica de Lião, 1956.)
A poesia que se remete a outras manifestações de arte, que invoca outras actualizações artísticas, reproduz uma prática e uma valoração que durante séculos, nos planos da pintura e da música antigas, por exemplo, como diz G. Gurdjieff, as resumia: toda a arte veiculava ideias e conhecimento e actualizá-la era revelá-los. Daí que mereça grande atenção no plano da explicitação do mesmo conhecimento todo o diálogo e interrogação ekfrástica seniana nas suas múltiplas actualizações:
Ancient art has a specific inner content. At one time, art possessed the same purpose that books do in our day, namely: to preserve and transmit knowledge. In olden days, people did not write books, they incorporated their knoledge into works of art. We would find a great many ideias in the works of ancient art passed down to us, if only we knew how to read.
Tal desejo, o desejo de prevalecer, e a batalha por consumá-lo perde-a o homem, e, de um modo lúcido e inconformado, o homem de que se reveste o poeta, para o poema. Perdem-na os poetas para os poemas, mas resta estabelecer até que ponto é que tal inelutável morte não consiste afinal numa vitória completa ou na mais completa forma de vencer, sendo alguns desses mesmos poemas vestígios monumentais de uma recusa que aceita. É o poema que garantidamente permanece e suplanta, na substância sensível actualizável pelo facto de ser dizível e intelectualizável assim como na materialidade dos seus suportes, aquele que o origina. Sendo o poeta um criador, experimentar desde logo este desnível devorador, que é .ter de morrer, que é saber ir sobreviver-lhe a obra criada, converteu-se desde há muito em tema e em problema à procura de um desenvolvimento e de uma saída. Em Neto Jorge temos toda uma teorização dos textos, dos poemas produzidos com custo, peças de tecido físico que, no papel, reflectem conceitos, funções e movimentos poéticos, teorização obliqua, porque a única possível, onde ocorre a despersonalização, o desmembramento, a «transfusão progressiva» (Jorge:189) do corpo do homem para o corpo do texto, como dizia Luiza numa excelente imagem desse esvaimento incontinente. O poema sai da corporeidade do autor pela «língua / ou [por] outro órgão de amor» para dizer o que «o braço não podia» (Jorge:82) e, uma vez proferido, aparece estruturado para ir construir uma realidade e é aí que passa a ter lugar o poeta, somente após o seu poema actuar e assim permitir que ele, poeta, exista, porque afinal só poderia haver poeta, depois de haver poema.
O modo como, quer num caso, quer noutro, quer numa quer noutra poéticas, o corpo é convocado, na sua dimensão totalizadora e mediadora, afinal, canal dialógico com o todo, com o Cosmos, na superação física de uma antropologia dualizadora, fez com que nelas se actualizassem dimensões do humano onde essa religação, essa quase fé e quase esperança, em sentido escatológico, por vestigiais que fossem, se tornassem possíveis e, por isso tecessem com outros textos, textos por ventura de fé plena e plena esperança, uma espécie de diálogo que é também um confronto, relação, diálogo implícitos que este trabalho visou explicitar e explorar, tomando como pontos de partida alguns poemas. Vimos como na reclusão da e pela palavra, Luiza Neto Jorge e Jorge de Sena, na medida em que corporizam um olhar particular sobre o imanente, lhe conferem, pela dimensão epifânica da palavra, uma saliência e uma relevância a todos os títulos luminosa.
Dizia uma vez Aquilino...
Dizia uma vez Aquilino que em Portugal
os filósofos se exilavam ainda em seu país
(v.g. Spinoza). O curioso porém
é que também ninguém foi santo lá:
os nascidos em Portugal foram todos sê-lo noutra parte
(St. António, S. João de Deus, etc.)
e outros santos portugueses, se o foram,
terá sido, porque, estrangeiros que eram e em Portugal
vivendo, não tiveram outro remédio
(v.g. Rainha Santa) senão ser santos,
à falta de melhor. Ó país danado.
Porque os heróis também nunca tiveram melhor sorte
(Albuquerque e outros que o digam) a menos que
tivessem participado de revoluções feitas
*em vez de* (v.g. o Condestável que fez
fortuna e a casa de Bragança e acabou só Santo quase).
(Jorge de Sena)
Sem comentários:
Enviar um comentário