Será o poema uma construção estritamente racional ou, pelo contrário, não convocará todo o ser nas suas mais inusitadas dimensões, recantos da mente impossíveis de encurralar por qualquer tomografia axial? Terá a racionalidade orgulhosamente posta toda na crítica suficiente capacidade de abarcar, engolir, resumir, a potência de sentidos desencadeados no poema, acontecimento de dicção? Ainda que o aspire, a resposta é não. Também é preciso virar as coisas ao contrário e partir para o poema como acontecimento na carne, no desempenho da carne, na sua absoluta actualização fisiológica para depois compreender todo o alcance da quase fé e do lado místico nele indelevelmente inscritos. O êxtase estético operado por uma boa leitura de viva voz expressiva, ou interior, memorizada, do poema neto-jorgiano A Magnólia, por exemplo, admitirá exclamações simplistas e absolutizadoras, da mais legítima subjectividade, como «talvez um dos poemas máximos da literatura em português», mas não é verdade que a energia maximizadora do prazer desencadeado não é apenas intelectual, mas física, por partir desde logo do desempenho de uma voz engatilhada por uma língua de carne que nos acomete e arrasta? Uma leitura deficitária do mesmo poema não o destruirá, não o anulará imediatamente? Crendo que uma leitura invisual na polpa Braile dos dedos sobe à voz, como no leitor levita dos olhos à voz performativa que tudo transforma em volta. Uma crítica que não baixou suficientemente ao corpo e à música da língua para exceder a referência ao mesmo corpo e à mesma música da língua, é ainda uma crítica de pensamento no seu primado cartesiano oprimente. Ainda não é totalizadora e por isso mesmo não descreve nem faz a suficiente paráfrase. Aliás absorver na paráfrase crítica esta poesia ou aquela poesia é um acto temerário porque as dimensões de silêncio e de intraduzibilidade são, desde logo, condições da mesma poesia (caucionada ou não por uma instância leitora com suficiente força canonizadora). O pensamento crítico não canoniza dada obra e dada poética, mas, como acontece paradigmaticamente com Sena e Luiza, recolhe, comenta e parafraseia o que pode. E o que pode é pouco. Neles, o poema é um poema de ruptura, é uma coisa entre as coisas, mas já irredutível à representação neo-realista com a sua retórica social militante optimista. O poema, tal como a pessoa, é já a epifania de algo além que precisa soltar-se na abertura de todos os seus sentidos e de todos os seus recursos, coisa que a utopia à esquerda e a utopia à direita, na sua pulsão totalizadora, tende ainda a reprimir:
«O que o ouvido deseja é ouvir música, e a proibição de ouvir música chama-se negação do ouvido. O que os olhos desejam é ver beleza, e a proibição de ver beleza chama-se negação da vista. O que a narina deseja é cheirar perfume, e a proibição de cheirar perfume chama-se negação do olfacto. Do que a boca quer falar é do justo e do injusto, e a proibição de falar do justo e do injusto chama-se negação do entendimento. O que o corpo deseja gozar são alimentos ricos e roupas belas, e a proibição desse gozo chama-se negação das sensações do corpo. O que o espírito quer é ser livre, e a proibição desta liberdade chama-se negação da natureza»
(Yang Chu, século II d. C.)
Teça-se desde já, a este respeito, uma parábola exemplificativa de uma outra vertente da erupção mística, extática e irreprimível do poema (que é corpo e do corpo parte) perante a sua própria epifania. O poema aparece e o corpo vai atrás: os homens titubeiam e adormecem perante os que conferenciam de poesia e de poetas, sobretudo quando, aos que conferenciam, lhes não assiste uma voz suficientemente trabalhada e por isso mesmo afirmativa, expressiva, que conheça os mecanismos articulatórios, inflexivos, diccionais, que qualquer discurso em público, por respeito ao bom gosto do público, deve merecer. Os mesmos homens despertam quando os que dizem competentemente qualquer texto e em especial a poesia (porque não a balbuciam, porque a não gaguejam, porque a não ciciam, porque a não nasalam) desenterram afinal do Zeus a Cornucópia toda da palavra nascida para o ouvido como primeira e essencial música, desde que afinada. E isto como se a missa recusada, o banquete rotineiro e aborrecido de falar de poesia e de poetas, que coloca os restantes à mesa na função solidária do acotovelamento e do pontapé reciprocamente despertadores, não passasse de um mero modo pagão dilatório da frementemente desejada comunhão monoteísta com o poema uno e o ministro da voz que o medeia, de que Luís Miguel Cintra será, ainda dentro desta parábola acabada de propor, o modelo. Também é esta a mística a que se reporta este ensaio porque visa flagrar na conceptualização restrita do vocábulo também a actualização sensível, a manifestação viva, potente, esponjosa e penetrante, pelo seu fulgor, da palavra poética e que em Sena e Neto Jorge carreiam toda a potência de uma conversão e reconversão. «A Portugal» podemos lê-lo como dos mais afirmativos cânticos de amor descritivos e sintéticos da história e onde a taxatividade, o cruel palavrão e o insulto exigem uma tradução de leitura precisamente ao contrário porque a contradição inclui o dito e pressupõe tal intensidade de paixão e de amor que por assim serem exigem a densa culminância, ela, sim, absoluta, da palavra poética:
Esta é a ditosa pátria minha amada. Não. Nem é ditosa, porque o não merece. Nem minha amada, porque é só madrasta. Nem pátria minha, porque eu não mereço A pouca sorte de nascido nela. Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta quanto esse arroto de passadas glórias. Amigos meus mais caros tenho nela, saudosamente nela, mas amigos são por serem meus amigos, e mais nada. Torpe dejecto de romano império; babugem de invasões; salsugem porca de esgoto atlântico; irrisória face de lama, de cobiça, e de vileza, de mesquinhez, de fatua ignorância; terra de escravos, cu pró ar ouvindo ranger no nevoeiro a nau do Encoberto; terra de funcionários e de prostitutas, devotos todos do milagre, castos nas horas vagas de doença oculta; terra de heróis a peso de ouro e sangue, e santos com balcão de secos e molhados no fundo da virtude; terra triste à luz do sol calada, arrebicada, pulha, cheia de afáveis para os estrangeiros que deixam moedas e transportam pulgas, oh pulgas lusitanas, pela Europa; terra de monumentos em que o povo assina a merda o seu anonimato; terra-museu em que se vive ainda, com porcos pela rua, em casas celtiberas; terra de poetas tão sentimentais que o cheiro de um sovaco os põe em transe; terra de pedras esburgadas, secas como esses sentimentos de oito séculos de roubos e patrões, barões ou condes; ó terra de ninguém, ninguém, ninguém: eu te pertenço. És cabra, és badalhoca, és mais que cachorra pelo cio, és peste e fome e guerra e dor de coração. Eu te pertenço mas seres minha, não.
(Jorge de Sena)
«O que o ouvido deseja é ouvir música, e a proibição de ouvir música chama-se negação do ouvido. O que os olhos desejam é ver beleza, e a proibição de ver beleza chama-se negação da vista. O que a narina deseja é cheirar perfume, e a proibição de cheirar perfume chama-se negação do olfacto. Do que a boca quer falar é do justo e do injusto, e a proibição de falar do justo e do injusto chama-se negação do entendimento. O que o corpo deseja gozar são alimentos ricos e roupas belas, e a proibição desse gozo chama-se negação das sensações do corpo. O que o espírito quer é ser livre, e a proibição desta liberdade chama-se negação da natureza»
(Yang Chu, século II d. C.)
Teça-se desde já, a este respeito, uma parábola exemplificativa de uma outra vertente da erupção mística, extática e irreprimível do poema (que é corpo e do corpo parte) perante a sua própria epifania. O poema aparece e o corpo vai atrás: os homens titubeiam e adormecem perante os que conferenciam de poesia e de poetas, sobretudo quando, aos que conferenciam, lhes não assiste uma voz suficientemente trabalhada e por isso mesmo afirmativa, expressiva, que conheça os mecanismos articulatórios, inflexivos, diccionais, que qualquer discurso em público, por respeito ao bom gosto do público, deve merecer. Os mesmos homens despertam quando os que dizem competentemente qualquer texto e em especial a poesia (porque não a balbuciam, porque a não gaguejam, porque a não ciciam, porque a não nasalam) desenterram afinal do Zeus a Cornucópia toda da palavra nascida para o ouvido como primeira e essencial música, desde que afinada. E isto como se a missa recusada, o banquete rotineiro e aborrecido de falar de poesia e de poetas, que coloca os restantes à mesa na função solidária do acotovelamento e do pontapé reciprocamente despertadores, não passasse de um mero modo pagão dilatório da frementemente desejada comunhão monoteísta com o poema uno e o ministro da voz que o medeia, de que Luís Miguel Cintra será, ainda dentro desta parábola acabada de propor, o modelo. Também é esta a mística a que se reporta este ensaio porque visa flagrar na conceptualização restrita do vocábulo também a actualização sensível, a manifestação viva, potente, esponjosa e penetrante, pelo seu fulgor, da palavra poética e que em Sena e Neto Jorge carreiam toda a potência de uma conversão e reconversão. «A Portugal» podemos lê-lo como dos mais afirmativos cânticos de amor descritivos e sintéticos da história e onde a taxatividade, o cruel palavrão e o insulto exigem uma tradução de leitura precisamente ao contrário porque a contradição inclui o dito e pressupõe tal intensidade de paixão e de amor que por assim serem exigem a densa culminância, ela, sim, absoluta, da palavra poética:
Esta é a ditosa pátria minha amada. Não. Nem é ditosa, porque o não merece. Nem minha amada, porque é só madrasta. Nem pátria minha, porque eu não mereço A pouca sorte de nascido nela. Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta quanto esse arroto de passadas glórias. Amigos meus mais caros tenho nela, saudosamente nela, mas amigos são por serem meus amigos, e mais nada. Torpe dejecto de romano império; babugem de invasões; salsugem porca de esgoto atlântico; irrisória face de lama, de cobiça, e de vileza, de mesquinhez, de fatua ignorância; terra de escravos, cu pró ar ouvindo ranger no nevoeiro a nau do Encoberto; terra de funcionários e de prostitutas, devotos todos do milagre, castos nas horas vagas de doença oculta; terra de heróis a peso de ouro e sangue, e santos com balcão de secos e molhados no fundo da virtude; terra triste à luz do sol calada, arrebicada, pulha, cheia de afáveis para os estrangeiros que deixam moedas e transportam pulgas, oh pulgas lusitanas, pela Europa; terra de monumentos em que o povo assina a merda o seu anonimato; terra-museu em que se vive ainda, com porcos pela rua, em casas celtiberas; terra de poetas tão sentimentais que o cheiro de um sovaco os põe em transe; terra de pedras esburgadas, secas como esses sentimentos de oito séculos de roubos e patrões, barões ou condes; ó terra de ninguém, ninguém, ninguém: eu te pertenço. És cabra, és badalhoca, és mais que cachorra pelo cio, és peste e fome e guerra e dor de coração. Eu te pertenço mas seres minha, não.
(Jorge de Sena)
1 comentário:
excelente leitura, muito interessante, parébens.
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