domingo, 9 de setembro de 2007

5. A OBRA PARTICULAR COMO PARTO CONSANGUÍNEO AO PASSADO

Com esta linhagem de questionamento e este tumulto ideológico confrontaram-se poéticas, movimentos e tendências estéticas. Num tempo de alargamento desta bolha insustentável clamando pela dissolução das hipocrisias políticas, dos pensamentos únicos, Neto Jorge e Sena escreveram. (O ano de 1961 parece ter sido qualquer coisa de termonuclearmente compulsivo em matéria de publicação poética na ruptura). Neles, a palavra poética irrompe justamente nessa potenciação de sentidos mais vastos, levitando da forma que os manifesta e sustenta: seja a temática do corpo, da sexualidade e erotismo, do acto criador ou da erupção corpórea (porque pelo corpo mediada) da poesia, subjacente a tudo repousa um prosaico absolutizado e absolutizável nas suas humílimas actualizações. Se pudesse ser redutível a um aforismo sintetizador, o poema é a cristalização monumental da condição observadora e fruidora do humano. Tais questões, agudamente colocadas a cada passo no conjunto da obra daqueles poetas, crescem em autenticidade e validade na medida em que nunca estejam fechadas, e ambas as poéticas, traduzindo expressivamente a plasticidade marmórea da poiesis, fazem justiça aos pressupostos de esperança e de além para que o género humano tende e nada parece poder apagar, porque alguns dos seus poemas permitem leituras pressupositivas da absoluta irredutibilidade do humano, dado o tom inconformado e resistente que tais textos absorvem e que, por exemplo, no poema neto-jorgiano «Quarta Dimensão», na passagem do presente do indicativo para o imperfeito, deixa de todo em todo entrever:

[...]

a luminosa vocação, a luminosidade
de uma terra sábia e rotunda
suplantava aqueles gritos portadores
de uma defunta órfica voz

[...]


(Luiza Neto Jorge, Os Sítios Sitiados, Poesia).

O relevo e a relevância poéticas para uma definição fundante e referencial da humanidade faz da obra seniana e neto-jorgiana algo de consanguineamente familiar quer da descrição tabular do escudo de Aquiles (tão magnificamente exemplificativa, por tão precoce como paradigma de interpenetração artística ou de um discurso interartístico transversal), quer de toda a sensibilidade e lirismo que a Afrodite Calipígea suscita, tratando-se da expressão de uma só ânsia: o trânsito para o plano da imortalidade, ganho somente conseguido na medida em que Aquiles sobreviva naquela descrição e Afrodite, pelo menos a Afrodite Calipígea, também prevaleça naquele mármore de impensável e eloquente impecabilidade e que na verdade ainda podemos contemplar ao vivo em Nápoles, no Museo Nazionale.

Outra e a mesma coisa a poesia. Quando o sentir o mundo e a realidade humana se traduz numa absorção cultural aos mais diversificados níveis, o resultado é a arte, e muitas vezes a arte que questiona a própria arte disseminada pelo passado, questionando nela as fontes de energia ― convicção e esperança ― que justificaram tamanhos investimentos (na arquitectura, na pintura e na música, por exemplo). Esse foi um dos posicionamento poéticos de Sena: da arte para o homem e naturalmente incluindo aí o seu destino último e para se confrontar com o seu próprio percurso e a sua perspectiva diferenciados relativamente àquela energia de base.

No entanto, a estes aspectos modernos da sua poesia aliou recursos da tradição medieval e renascentista, tornando a sua obra, simultaneamente, clássica e revolucionária. Disso é exemplo a utilização que, por vezes, fez do soneto e a par da forma clássica deste tipo de poema, surge um experimentalismo sintáctico e morfológico que subverte as fronteiras entre classicismo e modernidade, superando-as. Toda a sua obra, aliás, se orienta por esta tentativa de superação, a superação dos antagonismos entre escolas literárias (realismo social, surrealismo, experimentalismo), de certas oposições humanas com raízes na cultura ocidental, como as de corpo/alma, ciência/poesia, bem/mal, Deus/homem. Uma obra que estriba campos, uma obra personalista e uma perspectiva de Portugal de grande ousadia de que uma particular e rebelde ironia nunca se ausenta:

Por vezes, para os portugueses (e sobretudo pelos próprios portugueses), tem sido usado o termo grego diáspora, aplicado à colossal dispersão de seres humanos de origem portuguesa pelo universo ao longo dos séculos, sem dúvida numa proporção que poucos países do mundo poderão apresentar. Mas, quanto a mim, o uso deste termo deve ser feito com certas qualificações, e tendo em mente, pelo que tem a ver com a Península Ibérica, a que foi primeiro aplicado aquele helenismo. Com efeito, diáspora corresponde à expulsão dos judeus da Palestina, e à sua forçada dispersão pelo mundo, quando, no ano 70 da nossa era, o imperador romano Tito destruiu a Jerusalém que se rebelara contra a dominação de Roma. Enorme parte desses judeus terá tomado o caminho da nossa Ibéria, aonde por séculos constituíram a aristocracia do judaísmo, os sefarditas, por oposição aos judeus dispersos nas partes orientais da Europa ou no Oriente Próximo, os ashkenazis (esta profunda divisão ainda hoje subsiste no judaísmo, e são os últimos quem numericamente domina nos Estados Unidos e em Israel). Se pensarmos que os judeus da Ibéria tiveram, apesar de todas as restrições, catorze séculos de poderem misturar-se com a outra gente, e que, depois das Inquisições e das conversões forçadas ao catolicismo que criou os cristãos-novos (dos quais saíram algumas das maiores figuras das Espanhas católicas e canonizadas, todos com avós penitenciados pela Inquisição, como Santa Teresa de Jesus ou S. João da Cruz, grandes escritores de Doutores da Igreja, do mesmo modo que saíram famílias que judaizaram às escondidas até que os fins do século XVIII as libertaram, sendo que o brasileiro António José da Silva, o grande autor lisboeta de comédias, foi dos últimos a não escapar à fogueira), tiveram mais cinco séculos para continuarem mais livremente a mistura, nenhum de nós pode cuspir para o ar – até a família real portuguesa (e outras mais) tinha costela judaica por mais de um lado da árvore genealógica secreta. Portanto, diáspora, aplicado à gente portuguesa é como um lembrete do que haja de sangue judaico em nós (e saiba-se que, na Idade Média, foi na Península Ibérica que a cultura hebraica conheceu de novo uma era de magnificente esplendor). Metaforicamente, sem esquecer o acima dito, poderíamos fazer um paralelo entre o que aconteceu naquele distante ano 70 em que o ilustre Tito dispersou os judeus, e o que tem acontecido durante mais de oito séculos a todos nós, dispersos por sucessivas gerações de governantes portugueses, desde a fundação de um país que sempre desejou viver das rendas dos outros (e, por desgraças de vária ordem, ganhou a liberdade, mas não uma mudança dessa política). Nesse sentido, temos tido uma diáspora ao longo do tempo, como uma vez os judeus a tiveram no espaço (não contando as vezes, coitados, em que a bondade e a caridade cristãs os fizeram andar de mala aviada).

(Ser-se Imigrante e como, (2001), SENA, Jorge de.)


Uma crítica fundamental à identidade e à história que na arte seniana é superação: e esta superação tem raízes filosóficas na dialéctica hegeliana e no marxismo, reconhecidas pelo próprio escritor. Para Jorge de Sena, a poesia era, ela mesma, uma forma de testemunhar e transformar o mundo; da relação estabelecida entre o sujeito poético e o objecto que ele tomava como matéria da sua poesia resultava uma outra entidade — o próprio poema, objecto estético constituído por meio da linguagem. A poesia era, assim, uma forma de intervenção, embora entendida de forma diversa do neo-realismo. A crítica que faz ao Estado Novo é reveladora:

Criança que era, e adolescente que ia sendo depois, ainda recordo como republicanos da (“outra senhora”) se riam confiadamente, à espera da revolução que acabaria com aquilo tudo já, já... e tiveram tempo de morrer primeiro, porque aquilo de que eles se riam havia sido pacientemente construído de pedra e cal para resistir a tudo e mesmo se adaptar a todas as democracias deste mundo e do outro (não tem conta em Portugal os impolutos democratas que a gente conheceu aos milhares em posições, postos, e outras atitudes altamente comprometedoras da integridade pelo menos moral das suas pessoas físicas, mas temos de aceitar que tudo no mundo se faz com conversos e com arrependidos, e, é sabido, alguns dos maiores santos começaram por ser refinados patifes).

(Ser-se Imigrante e como, (2001), SENA, Jorge de.)

Tal surge exemplarmente claro, a propósito da oratória A Criação, de Haydn, perante a qual procede a um escondimento do mesmo objecto musical haydniano para poder projectar poeticamente as suas reflexões no afastamento reconhecido entre o Criador e as criaturas, o divino e o humano [neste ponto, partilhamos do essencial da análise de Francisco Cota Fagundes em A Poet’s Way with music: Humanism in Jorge de Sena’s Poetry, pp. 197-200], ao evocar «estes homens que podiam escrever da Criação, Haydn, Milton e outros», Sena assume-se como profundamente humano quando se afasta desse «mundo», «apenas criado» na ausência de uma humanidade imperfeita e limitada, e da qual ele, assumindo uma voz plural, como se de geração, um «nós», é o mais fiel e atento representante:


Felizes estes homens que podiam escrever da Criação,
confiadamente compor – por mais dores que sofressem
enquanto humanos e como seres viventes –
tão jubilantes cânticos do criar do Mundo.
Era belo, era bom, era perfeito o Mundo.
É certo que o cantavam quando apenas era criado,
e o par humano pisava sem pecado
O jardim paradisíaco.

Nós nem mesmo em momentos únicos,
raríssimos, epifânicos,
― e não só por não crermos no pecado ―,
não podemos.
(Arte de Música, p. 175.)

As pulsões textualizadoras de Luiza e do autor da conferência sobre Rimbaud «O Dogma da Trindade Poética», 1941, num dado momento manifestadas curiosamente em circunstâncias de um certo e distinto exílio do solo materno, distinguindo-os embora a títulos vários no que a processos discursivos, (para além do percurso que em duas décadas se fez de um maior textualismo ou tensão textual a uma maior tensão emocional) a orientações filosóficas ou pelo menos a uma particular mundividência de fundo, por exemplo, diga respeito, une-os numa comum vertente transformadora do fazer poético, marcadamente autónoma e irredutível a lógicas de escola ou de movimento, embora à primeira e ao segundo permeáveis, numa afirmação de carácter assinalável sobretudo tendo em conta as cinzas ainda fumegantes de um modernismo retomado por uma sensibilidade pós-modernista disposta a cavalgar o herdado Pégaso de rédea de ouro, já domado e obediente às enormes possibilidades de ductilidade da palavra e da matéria privilegiadas pelo primeiro modernismo:

Corpo Insurrecto

Sendo com o seu ouro, aurífero,
o corpo é insurrecto.
Consome-se, combustível,
no sexo, boca e recto.

Ainda antes que pegue
aos cinco sentidos a chama,
por um aceso acesso
da imaginação
ateiam-se à cama
ou a sítio algures,
terra de ninguém,
(quem desliza é o espaço
para o corpo que vem),

labaredas tais
que, lume, crepitam
nos ciclos mais extremos,
nas résteas mais íntimas,
as glândulas, esponjas
que os corpos apoiam,
zonas aquáticas
onde os órgãos boiam.

No amor, dizendo acto de o sagrar,
apertado o corpo do recém-nascido
no ovo solar,
há ainda um outro
corpo incluído,

mas um corpo aquém
de ser são ou podre,
um repuxo, um magma,
substância solta,
com pulmões.

Neste amor equívoco
(ou respiração),
sendo um corpo humano,
sendo outro mais alto,
suspenso da morte,
mortalmente intenso,
mais alto e mais denso,

mais talhado é o golpe
quando o põem em prática
com desassossego na respiração
e o sossego cru de quem,
tendo o corpo nu,
a carne ardida,
lhe pede o ladrão
a bolsa ou a vida.

(Luiza Neto Jorge, Terra Imóvel, Poesia.)

1 comentário:

ana wagner disse...

Obrigada pela gentil visita e comentário, Joshua! Você tem vários blogs e parecem interessantes. Virei visitá-lo com mais tempo.
Um abraço!