domingo, 9 de setembro de 2007

4. IMORTALIDADE E FÉ OU O CÁLCULO QUE ATRAIÇOA

A tematização explícita ou implícita da imortalidade não foi banida da poesia ocidental só pelo facto de a problematização negadora de Deus dela constar cada vez mais agudamente nos últimos dois séculos, sobretudo após a revolução coperniciana, nos planos teológico e filosófico, quanto ao conceito de Providência (em diálogo e presença interactuante com o homem, as sociedades e a sua história, ou, pelo contrário, inexoravelmente alheada? Dentro ou fora dos mecanismos de mal desencadeados pelas leis da natureza?), revolução indirectamente operada na psique europeia do século XVIII pelo Grande Terramoto de Lisboa. Pelo contrário, o trabalho da palavra orquidiante e magnolescente, porque abrindo em magnífica e densa ascensão de silêncio e, portanto, em fechamento irredutível a paráfrases possessivas nos tubos de ensaio de uma crítica com pretensões demasiado científicas para a circunscrição de objectos tão ilimitadamente fluidos, inapreensíveis e moventes, pressupõe somente uma espiral reflexiva similar à da reclusão dos místicos, para quem a visão do Absoluto no (e a partir do) prosaico permitia mergulhar ainda mais no mesmo Absoluto. Pelo contrário ainda porque estilhaçadas as certezas-cimento social de base intuitiva no âmbito das confissões cristãs, perdidas as grandes bases comuns agregadoras, assentes no legado judeo-cristão, tais conceitos não desapareceram mas ganharam maior força perturbadora, uma maior capacidade interrogativa, uma maior amplitude de problematização e tematização, fosse ou não fosse a partir de pontos de vista mais esquerdizantes, mais do ponto de vista de um messianismo marxizante, que é um cristianismo sem Cristo com a respectiva, correlata e concorrencial promessa escatológica, ou fosse no plano mesmo da deriva anarquista, quando questiona e combate as chamadas grandes «ficções sociais». Perdida a fé judeo-cristã, fica o influxo da ética judeo-cristã, perdida a força utópica da teoria ideológica, quer como projecto quer como reduto, fica aquele personalismo forte onde melhor tende a consolidar-se o primado da pessoa e a sua irredutível defesa e afirmação. A esta crise, a tal extinção de todas as certezas ideológicas ou religiosas, não é imune a consciência artística dos dois poetas. No fim de um percurso duro e denso, Sena reverbera, no seu soneto «Quem muito viu...», de ressonâncias autobiográficas, um fado pesado, onde se retomam implicitamente todos os fios de relação tortuosa, contraditória e paradoxal com a pátria, fios mal resolvidos camonianos, bocageanos, mas também de qualquer profeta Elias bíblico cindido com os do seu sangue pelos próprios imperativos de consciência, e em que a morte precede a própria morte, mas onde curiosamente há um advérbio de constância e de identidade «será sempre sem pátria» a introduzir uma nota de resiliência vital:

Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

Ora, como, de igual modo, não a ler, a essa forte componente reflexiva, agregadora e explosiva mística, embora diferenciadamente, nas manifestações poéticas neto-jorgianas e senianas? Como não ler em ambos o posicionamento do poema como fronteira, como limiar mediador do tempo, do espaço, do corpo e da vontade, dentro ou fora da vertente surrealizante? Como não ver ainda claramente, por exemplo, em Sena, um fortíssimo diálogo com o Belo, provenha de onde provenha, e uma poesia saturada de experimentalismo e abertura? O mesmo encontramos, embora num posicionamento funcional outro, nas «escritas daninhas» (Jorge:229) de Luiza, que propõe legendas para quadros de Brauner e Max Ernst, faz as aves de Sá de Miranda caírem com a calma sob a forma de avestruzes, transforma os cantos de Os Lusíadas em Recantos e aumenta-lhes o número para dezanove, e onde encontramos uma galinha presa que «do sótão [...] / viu um avião voar» ou uma sombra que se suicidou «debaixo do meu pé» (Jorge:39). Nada nela é automático, mas consciente tendo como tem «todo o eixo da gramática (...) à / disposição» (Jorge:158). Joaquim Manuel Magalhães chama-lhe «fingimento sabotador», a este processo que em Os Sítios Sitiados gera uma «irracionalidade surreal» rercorrendo à «racionalidade da escrita» e à «perseguição consciente [...] de determinados efeitos»: «o mais aparente inconsciente do texto é atravessado por uma rede conceptual consciente, que finge um desequilíbrio que não passa de uma outra ordem sintáctica e do imaginário» (Magalhães, 1981: 209).

As chaves de leitura filosóficas, Hegel, em Sena, uma consciência feminina da escrita na invenção de uma poesia crua em que o corpo da linguagem se confunde com o corpo do sujeito poético, em Luiza, e que fundamentam as suas poéticas, não são suficientes para univocar qualquer das nossas leituras porque a provocação, uma vez desencadeada, segue operante e aberta. Até o silêncio com que a educação em Portugal tende programaticamente a cumular autores textualmente espessos, como estes, atesta a divergência revolucionária instituída no conjunto daquelas obras com os limites da chamada decência e do politicamente adequado, à recusa hipócrita do vernacular ou do nome e função sexual do que sexualmente deva funcionar, também, em parte, porque o poder resiste o mais que pode ao humor questionador dos mitos colectivos, à revelação inteira do corpo desnudado e à força desinstaladora do poema provocação que é desestabilização. Há efectivamente a tendência para sacralizar de tal modo o saber e a autoridade institucionais que estes cristalizam numa seriedade esvaziada de autenticidade, pronta a contaminar de hieratismo o fluxo puro dos sentimentos e dos pensamentos que se lhes deparam ou então exigindo um culto, uma veneração subliminar condições prévias de qualquer favorecimento da atenção:

[...]

Sendo com o seu ouro, aurífero,
o corpo é insurrecto.
Consome-se, combustível,
no sexo, boca e recto.

[...]

(Luiza Neto Jorge, Terra Imóvel, Poesia.)

Ora, as questões da esperança em sentido teológico, pelo menos nos últimos dois séculos, se têm sido colocadas e valoradas de uma forma antropologicamente consistente, tal abordagem pôde agregar por vezes pressupostos absurdizadores, porque quantificacionistas e redutores subjacentes à aplicação de metodologias científicas e matemáticas lá, onde quantificar e calcular as probabilidades de validade da(s) Fé(s) e da(s) Esperança(s), resumíveis à existência ou não de Deus, e enquanto virtudes teologais definidas pela Igreja, redunda numa ousada anedota paradoxalmente destrutiva da mesma Fé e Esperança no momento em que são concomitante e calculisticamente assumidas ou apostáveis.

É o que acontece, por exemplo, na célebre máxima baseada na chamada Esperança Matemática: «Posso apostar que Deus existe: se ganhar, ganho tudo, se perder, não perco nada». Por outras palavras, a equação, segundo Pascal, em que Esperança Matemática (E), que se traduz pela relação E=G/P, em que G é o ganho que pode resultar da aposta e P a probabilidade associada a essa aposta. Baseando-nos sempre em conceitos práticos da matemática podemos ver que se a esperança matemática é muito elevada, devemos logicamente apostar nessa hipótese, pois, sendo o Ganho enorme ― na prática "infinito" (a vida eterna no Paraíso) ― e mesmo que a probabilidade de isso acontecer seja quase zero, a divisão dum valor infinitamente grande por um infinitamente pequeno dá uma esperança matemática igual a um valor infinitamente grande. Ora, era assim que se procuravam convencer, desde há dois séculos, as pessoas esclarecidas ou cientificamente cultivadas, e, portanto, tendencialmente não crentes, a aceitar a existência de Deus, mesmo se, como muito bem se pode concluir, tal aceitação fosse racional, interesseira e desprovida de qualquer valor moral e até mesmo contraditadora do sentido de Deus que os crentes bem fundamentados e culturalmente esclarecidos, por outro lado, defendem. No seu ajuste de contas com o idealismo, não apenas espinosita, mas sobretudo o hegeliano, Ludwig Feuerbach e os seus «Princípios da Filosofia do Futuro» (1843) ecoam sempre para fazer claras distinções:

«Se, portanto, pensas em Deus como num ser sem a pressuposição de qualquer outro ser ou objecto exterior, a propriedade que transferes para Deus é uma propriedade do teu pensamento.»,
Ludwig Feuerbach, «Princípios da Filosofia do Futuro» (1843), p.31.

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